segunda-feira, 26 de abril de 2010

DA I REPÚBLICA AO 28 DE MAIO - I

POLÍTICA, ECONOMIA E SOCIEDADE
Jorge Gonçalves Guimarães

APRESENTAÇÃO
Apresentar um síntese aceitavelmente completa dos principais aspectos da I República seria uma tarefa tão árdua quanto difícil. Contudo, porque um ciclo de conferências como o que agora decorre, deve ser acompanhado de alguns elementos que possam servir de suporte a uma reflexão, decidimos apresentar aqui um texto que, embora mais sucinto que o desejável, dada a vastidão do tema, traça algumas linhas da época que anunciam já o golpe militar de 28 de Maio de 1926, ou, se se preferir por necessidade categorização, que prenunciam o seu insucesso.
Porque, por um lado, o suporte onde apresentamos esta nossa reflexão, fruto apenas de algumas leituras, não torna “simpática” a apresentação de textos extensos, e, por outro, como é consabido por todos quantos nos dedicamos às múltiplas tarefas escolares, é diminuto o tempo de que dispomos, optámos pela sua apresentação periódica, em quatro partes, ao longo das próximas semanas. Depois de uma sumária abertura, bem ao jeito de propositio, a ideologia e o clima de instabilidade política integram este primeiro andamento, a que se seguirão breves considerações sobre a economia. Um esboço do retrato da sociedade da época e da evolução da instituição militar, elemento fundamental para a compreensão do termo da I República, informação as terceira e quarta partes.
No seu conjunto, estes textos são um desenvolvimento de parte de um outro que, há já algum tempo, sob o título «Duas revistas da I República. A Águia e a Seara Nova», apresentámos na revista Brasil Europa–Correspondência Euro-Brasileira .

1. A ABRIR…
O desequilíbrio de forças entre o Poder Executivo e o Legislativo, fazendo com que aquele dependesse das maiorias parlamentares, a dispersão partidária, a presença de forças conservadoras que pretendiam o retorno da monarquia, os movimentos operários e o marasmo económico e financeiro, foram alguns dos aspectos que frequentaram a Primeira República e conduziram à perda das bases sociais que a apoiavam, de tal forma que nem a recuperação económica anunciada em 1925 foi suficiente para suster o descontentamento generalizado. Se as classes médias sofriam com a crise económica e financeira e as elites económicas e intelectuais olhavam o regime parlamentar como fonte de ineficácia legislativa e instabilidade governativa, o operariado, maioritariamente organizado, primeiro na União Operária Nacional e depois na Confederação Geral do Trabalho, não vendo melhoradas as suas condições de vida, desenvolveu, através da acção directa ou do movimento grevista, mecanismos de luta e reivindicação que, se nem sempre foram contra o regime – por terem tido um carácter mais económico e social que político - convocaram uma reacção contra ele por parte dos grupos de direita.
Além da conjuntura política e económica, o exemplo de acções militares em alguns países europeus que estiveram na base de regimes ditatoriais, foi também um elemento motivador para a intervenção de Gomes da Costa a partir de Braga.

2. POLÍTICA E IDEOLOGIA
No plano ideológico-político, o ideário republicano apresentou-se como algo despido de programa definido. Assim o ilustra Oliveira Marques ao afirmar que «a tendência geral era [...] para se conceder à palavra “República” algo de carismático e místico, e para acreditar que bastava a sua proclamação para libertar o País de toda a injustiça e de todos os males»(1) . Ilustrativa deste vazio é circunstância de, como esclarece Fernando Rosas, de o republicanismo ter procurado ser uma «regeneração democratizante dos constitucionalismo bragantino»(2).
O Partido Democrático, que nunca abandonou a designação de Republicano, embora tenha contado com personalidades carismáticas como Elias Garcia, Bernardino Machado, Afonso Costa e António Maria da Silva, era um partido heterogéneo e nunca teve uma direcção efectiva, o que de alguma forma explica o fenómeno das dissidências e a criação, logo a partir de 1911 de partidos subsidiários, sendo que em 1926 se contavam seis partidos (3) cuja origem, directa ou indirecta, se vai encontrar no PRP, isto, não contando os que entretanto se formaram e dissolveram. Estes factos ajudam a perceber a instabilidade política deste período que conheceu oito presidentes da república e quarenta e cinco governos. A este respeito, como destaca Kathleen Schwartzman(4) , se o número de partidos, por si só, não é indicador de instabilidade, já o mesmo não se pode dizer da velocidade de formação e de dissolução partidária que é, sem dúvida, indicadora de uma crise política subjacente. De facto, a constante obstrução parlamentar fazia com que os governos dependessem das maiorias parlamentares, elas próprias obtidas a partir de alianças criadas e quebradas por questões conjunturais ou mesmo pessoais que conduziram à queda de vários governos.
Indicador do clima de instabilidade, é também a formação de grupos paramilitares de voluntários defensores do regime. Reagindo contra as incursões monárquicas de Paiva Couceiro, a permanente agitação social e as lutas entre republicanos, surge, associado ao Partido Democrático e na defesa dos princípios republicanos originais, o grupo da Formiga Branca, que mais tarde foi secundado por outros, de ideologia contrária como é o caso dos Lacraus, marcados por uma ideologia de direita e monárquica, ou a Legião Vermelha, frequentada por extremistas de esquerda.
No campo das ideologias destaca-se desde cedo o aparecimento de grupos, ora antagónicos, ora severamente críticos em relação ao regime ou à prática política. Um deles, o Integralismo Lusitano, surgiu logo após a implantação da República, no meio universitário de Coimbra. Começou por ser um movimento essencialmente doutrinário e literário - ganhando forma com o aparecimento, em 1914, do primeiro número da revista Nação Lusitana, publicação inspirada na Action Française, de inspiração antiliberal e antidemocrática - para rapidamente se transformar num movimento político, conservador e monárquico tradicional, com uma organização própria que, sobretudo a partir de 1917, começa a desempenhar um papel importante na própria política nacional ao qual se associam vários intelectuais e militares. Autodefinia-se da seguinte forma: «nacionalista por princípio, sindicalista (corporativista) por meio, monárquico por conclusão»(5) .
Em 1921 destaca-se o aparecimento da Seara Nova, que se apresentou como a representação do «esforço de alguns intelectuais, alheados dos partidos políticos mas não da vida política, para que se erga, acima do miserável circo onde se debatem os interesses inconfessáveis das clientelas e das oligarquias plutocracias, uma atmosfera mais pura em que se faça ouvir o protesto das mais altivas consciências, e em que se formulem e imponham, por uma propaganda larga e profunda, as reformas necessárias à vida nacional»(6) . Tratava-se de um órgão de intervenção política e cultural onde diversos intelectuais republicanos de esquerda, ainda que não vinculados a qualquer ideologia ou partido, participavam na actividade política, procurando gerar um ambiente de opinião pública que exigisse e apoiasse um largo conjunto de reformas(7).
A não aceitação da instabilidade política do país e do domínio do Partido Democrático levou mesmo, em 1923, a que um grupo de integralistas e seareiros, se unissem na busca de uma solução no grupo Homens Livres, que, apesar de congregar ideologias diferentes, tinha como «denominador comum: a idêntica recusa do statu quo institucional, o repúdio pelo demo-liberalismo, a recusa dum regime de balbúrdia, “plutocracia” e ineficácia governativa»(8) . Um dos seus autores, o integralista Augusto da Costa, caracteriza o estado das coisas da seguinte forma: «[a] ausência de ideal colectivo manifesta-se aberta e claramente na constituição e nas lutas dos partidos políticos[...] Ainda poderia atribuir-lhes algum valor e olhá-los com alguma simpatia , se porventura as lutas dos partidos entre si para a conquista do governo fossem travadas à volta de princípios e ideias e não à volta de individualidades geralmente destituídas tanto de ideias como de princípios. [...] Esta divergência entre a Nação e os partidos, levada para o Parlamento, torna-se incoerente, dispersa, muitas vezes contrária ao interesse nacional. [...]Não há representantes de interesses nacionais: existem apenas representantes dos partidos. Daí a corrupção»(9) .
Para além dos Seareiros e dos Integralistas, a Igreja Católica também desenvolveu uma acção conducente à mobilização dos intelectuais e das massas. Em 1912, o Centro Académico de Democracia Cristã, que havia sido fundado na Universidade de Coimbra em 1901, conheceu uma reorganização sob a direcção de Cerejeira e Salazar que, num discurso proferido naquela cidade, na Conferência de Reabertura, aponta alguns dos problemas da vida social e política do país, fazendo também um apelo unificador: «o democrata-cristão perfeitamente integrado na família, na pátria e na sociedade religiosa, deve ser uma unidade útil, neste momento histórico em que cada indivíduo se esforça por ser uma inutilidade social»(10) . Tratava-se de uma organização de universitários, na sua maioria monárquicos, que, pondo de lado as questões de regime político, pretendiam, como refere Oliveira Marques, formar uma «sociedade social católica baseada nas encíclicas de Leão XIII»(11) , das quais a Rerum Novarum constituía a principal fonte de inspiração(12) .
Combatendo também o anticlericalismo da I República, alguns dos membros do C.A.D.C., defendendo os princípios do Catolicismo Social, formaram, em 1917, em moldes partidários e com carácter nacional, o Centro Católico Português que, logo em1918, conseguiu eleger quatro deputados e um senador. Na tese apresentada ao II Congresso do Centro Católico Português, em 1922, Salazar define-o como «um organismo político para actuar por meios políticos [com vista] à modificação das leis opressivas da Igreja [e dos direitos dos católicos o que o obriga] a intervir no acto eleitoral, a tomar assento nas Câmaras e a desenvolver nelas e fora delas a acção mais enérgica, no sentido de conseguir da maioria a aprovação de medidas favoráveis, e dos governos a manutenção [dos direitos dos católicos]»(13) . Assim, defendia a «obediência aos poderes constituídos [independentemente da] adesão ao regímen»(14) , «a colaboração, pela aceitação e desempenho de cargos públicos»(15) , a união dos católicos ainda que com «sacrifício transitório da sua actividade política partidária ou de regímen, enquanto a questão política não estiver definitivamente resolvida»(16) . Finalmente, ao afirmar «que toda a força política que pretenda desenvolver-se pela representação efectiva de verdadeiros interesses, tem de apoiar-se sobre uma organização não exclusivamente política mas social de profissões e de classes»(17) , estava já a anunciar o modelo de organização corporativa do Estado Novo(18) .
Ainda que não descubra qualquer relação directa entre o CCP e o golpe militar de 28 de Maio, o conservadorismo dos seus membros não terá permanecido indiferente, não sendo de descurar a sua participação governamental, destacando-se a figura de Salazar que, em Julho de 1926, preside à Comissão da Reforma Tributária e em 1928 assume a pasta das finanças.

NOTAS
(1) A. H. de Oliveira Marques, A Primeira República Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1980, p.64.
(2) Fernando Rosas, Lisboa Revolucionária. 1908-1975, Lisboa, Tinta da China, 2010, p. 47.
(3) Partido Radical, Partido da Esquerda Democrática, Partido Democrático (P.R.P.), Acção Republicana, Partido Nacionalista, União Liberal.
(4) Kathleen C. Schwartzman, «Instabilidade Democrática nos Países Semiperiféricos. A Primeira República Portuguesa», in AAVV, O Estado Novo. Das Origens ao Fim da Autarcia. 1926-1959, Vol. I, Lisboa, Fragmentos, 1987, p.150.
(5) A Monarquia, 20 de Abril de 1921, apud Manuel Braga da Cruz, Monárquicos e Republicanos no Estado Novo, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1986, p.23.
(6) Sottomayor Cardia (Org. de), Seara Nova-Antologia, Vol.I: Pela Reforma da República (1) 1921-1926, Lisboa, Seara Nova, 1971, p. 90.
(7) «A Seara Nova Pretende:», in Sottomayor Cardia (Org. de), Seara Nova - Antologia, Vol.I: Pela Reforma da República (I) 1921-1926, Lisboa, Seara Nova, 1971, p. 89.
(8) João Medina, O Pelicano e a Seara. A Revista Homens Livres, Lisboa , Edições António Ramos, 1978, p.11.
(9) Augusto da Costa, «A Crise Portuguesa e a Reacção dos Homens Livres», in João Medina, O Pelicano e a Seara. A Revista Homens Livres, Lisboa , Edições António Ramos, 1978, pp. 57-59.
(10) Oliveira Salazar, «Conferência na Reabertura do C.A.D.C. (1912)», in Manuel Braga da Cruz, (Org. de), António de Oliveira Salazar. Inéditos e Dispersos, Vol. I: Escritos Político-Sociais e Doutrinários (1908-1928), Lisboa, Bertrand Editora, 1997, p. 178.
(11) A. H. de Oliveira Marques, A Primeira República Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1980, p. 71.
(12) Sublinhado nosso.
(13) Oliveira Salazar, «Centro Católico Português. Princípios e Organização» (Tese apresentada ao II Congresso do Centro Católico Português, 1922) , in Manuel Braga da Cruz, op. cit., p. 278.
(14) Idem, ibidem, p. 255.
(15) Idem, ibidem, p. 256.
(16) Idem, ibidem, p. 271-272.
(17) Idem, ibidem, p. 282.
(18) Recorde-se, em jeito de apontamento, que o corporativismo em Portugal foi definido pelo artº 5º da Constituição de 1933, onde é afirmado expressamente o carácter corporativo da República Portuguesa, ideia que será depois expressa no Estatuto do Trabalho Nacional, muito embora a organização corporativa propriamente dita só tenha surgido em 1956, através da Lei nº 2086, conduzindo dessa forma à criação das primeiras corporações (Lavoura, Transportes e Turismo, Crédito e Seguros e Conservas). Assim, o corporativismo do Estado Novo, que nas palavras de Salazar se pretendia «um corporativismo de associação e não de Estado», acabou por adoptar, na prática, a segunda forma. Com efeito, a Câmara Corporativa, criada em 1933, como órgão consultivo da Assembleia Nacional, portanto com funções legislativas, e que, a partir de 1935, passou também a ser consultada pelo próprio Governo, no âmbito da sua competência legislativa, só conheceu uma orgânica interna definida a partir de 1966. As corporações, elemento fundamental de um regime constitucionalmente definido como corporativo, não só no plano económico, mas também moral e cultural, só foram criadas e viram definidas as suas competências, como se referiu, na década de cinquenta e, apesar de a guerra civil de Espanha e o segundo conflito mundial teram funcionado como entraves ao desenvolvimento corporativo, não esclarecem um tão grande atraso na implementação do sistema, pelo que essa demora só pode ser justificada por uma efectiva intervenção do Estado que, no plano dos princípios, se pretendia apenas supletiva, mas que de facto acabou, em benefício de uma política de condicionamento industrial, por se transformar em centralista e burocrático. Mais, será mesmo em nome desse centralismo e desse dirigismo económico que certas estruturas de tipo corporativo, como os Sindicatos Nacionais e as Casas do Povo, são criados, aqueles constituindo, no fundo, um instrumento de controlo das classes profissionais que viam os seus interesses subordinados ao vago conceito dos interesses superiores da economia nacional, estas, integradas num programa cultural, a que também a política de condicionamento industrial não era alheia, que pretendia criar um paradigma de cultura popular de base nacional.

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